"[...] A 'civilização' que estamos acostumados a considerar como uma posse que aparentemente nos chega pronta e acabada, sem que perguntemos como viemos a possuí-la , é um processo ou parte de um processo em que nós mesmos estamos envolvidos. [...] A idade Média deixou-nos grande volume de informações sobre o que era considerado comportamento socialmente aceitável. Nesse particular , preceitos sobre a conduta às refeições também tinham importância muito especial. Comer e beber nessa época ocupavam uma posição muito mais central na vida do que hoje, quando propiciavam - com frequência- embora nem sempre - o meio e a introdução às conversas e ao convívio. [...] Nas casas dos mais ricos , os pratos são em geral tirados de um aparador , embora , frequentemente, sem nenhuma ordem especial. Todos tiram- ou mandam tirar - o que lhes agrada no momento. As pessoas se servem em travessas comuns. Os sólidos (principalmente a carne) são pegados com a mão e os líquidos com conchas ou colheres. Mas sopas e molhos ainda são frequentemente bebidos levando-se à boca os pratos ou travessas. Durante muito tempo, além disso, não houve utensílios especiais para diferentes alimentos. Eram usadas as mesmas facas e colheres. E também os mesmos copos . [...] ao final da Idade Média , o garfo surgiu como utensílio para retirar alimentos da travessa comum. Nada menos que uma dúzia de garfos são encontrados entre os objetos de valor de Carlos V. Já o inventário de Carlos de Savóia, muito rico em utensílios opulentos de mesa , menciona um único garfo. No século XI, um doge de Veneza casou-se com uma princesa grega. No círculo bizantino da princesa o garfo era evidentemente usado. De qualquer modo , sabemos que ela levava o alimento à boca 'usando um pequeno garfo de ouro de dois dentes'. Este fato, porém , provocou um horrível escândalo em Veneza. A novidade foi considerada um sinal tão exagerado de refinamento que a dogaresa recebeu severas repreensões dos eclesiásticos , que invocaram para ela a ira divina. Pouco depois, ela foi acometida de uma doença repulsiva e São Boaventura não hesitou em declarar que isto foi um castigo de Deus. Não obstante , a atitude que acabamos de descrever no tocante à 'inovação do garfo demonstra algo com especial clareza. As pessoas que comiam juntas na maneira costumeira na Idade Média , pegando a carne com os dedos na mesma travessa, bebendo vinho no mesmo cálice, tomando a sopa na mesma sopeira ou prato fundo, [...] tinham entre si relações diferentes das que hoje vivemos. E isto envolve não só o nível de consciência , clara , racional, pois sua vida emocional revestia-se também de uma diferente estrutura e caráter. Suas emoções eram condicionadas a formas de relações e conduta que , em comparação com os atuais padrões de condicionamento, parecem-nos embaraçosas ou pelo menos sem atrativos. O que faltava nesse mundo courtois [...] era a parede invisível de emoções que parece hoje se erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e separando, a parede que é frequentemente perceptível à mera aproximação de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou as mãos de outra pessoa, e que se manifesta como embaraço à mera vista de muitas funções corporais de outrem, e não raro à sua mera menção, ou como um sentimento de vergonha quando nossas próprias funções são expostas à vista de outros , em absoluto apenas nessas ocasiões".
Elias, Norbert . O processo civilizador, São Paulo: Jorge Zahar, 1995. V.1. P. 73.82.